Defensoria Pública pede esclarecimentos à Prefeitura de SP sobre suspensão de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha
Núcleo de defesa das mulheres solicita que pasta esclareça motivos da decisão dentro de cinco dias
Dano existencial é aquele que atinge o projeto de vida de uma pessoa, frustrando o seu direito à realização pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade. Foto: Freepik
A Defensoria Pública de SP obteve uma decisão judicial que reconheceu a existência de danos existenciais em uma situação decorrente de tentativa de feminicídio, determinando que o agressor pague à vítima uma indenização no valor de R$ 50 mil. Determinou, ainda, o pagamento de mais R$ 55 mil a título de indenizações por danos materiais, morais e estéticos.
Dano existencial é aquele que atinge o projeto de vida de uma pessoa, frustrando o seu direito à realização pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade. De acordo com o defensor público Júlio Camargo de Azevedo, a decisão chama a atenção por seu ineditismo ao aplicar a teoria do dano existencial a situações de violência doméstica e familiar contra a mulher.
O processo tramitou no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São José dos Campos/SP.
Entenda o caso
Segundo consta nos autos, Ana e Ricardo (nomes fictícios) pertenciam a núcleos familiares próximos e mantiveram um relacionamento, o que gerou em Ana a suspeita de estar grávida. Após comunicação sobre a possível gestação, Ricardo sugeriu por diversas vezes que Ana realizasse um aborto - o que sempre foi negado pela mulher.
Certo dia, Ricardo marcou um encontro com Ana e, depois de levá-la a um lugar ermo, desferiu diversos golpes contra sua cabeça, membros e corpo. Os golpes a fizeram ficar inconsciente, e os sentidos somente foram recobrados horas depois, quando foi encontrada por policiais militares e levada a um hospital - quando então foi constatado que Ana não estava, de fato, grávida.
Ana ficou internada em razão de múltiplas faturas (inclusive cranianas) e escoriações por todo o corpo. Como consequência deste fato, ela perdeu a mobilidade de um dos braços, perdeu parte da visão, além de ter diversas cicatrizes na cabeça, no rosto, nos braços, etc. Ela também passou a desenvolver transtornos psiquiátricos, além de constrangimentos constantes pela sua aparência após os fatos.
Na esfera criminal, Ricardo foi processado e condenado pelo crime de tentativa de feminicídio. A Defensoria Pública prestou assistência jurídica à vítima perante o Tribunal do Júri. Em razão da violência física, moral e psicológica, Ana procurou a Defensoria Pública para solicitar indenização pelos danos sofridos.
Danos existenciais
Conforme apontou na ação o defensor público Júlio Camargo de Azevedo, o ordenamento jurídico brasileiro garante proteção à vida, à saúde, à capacidade laboral, à personalidade e ao projeto existencial de vida. No caso em questão, esses direito "restaram fartamente violados, eis que, além de atentarem contra a vida de Ana, afetaram permanentemente sua saúde, além de inabilitá-la para gerir a própria subsistência sem o auxílio de sua mãe, advindo daí, portanto, o dever de indenizar", pontuou.
"Ricardo frustrou o projeto de vida e o livre desenvolvimento da personalidade da Ana. A tentativa de homicídio causou-lhe sérias lesões da esfera existencial e prejudicou a expectativa de uma vida longa digna, sem violência e traumas. Dificilmente, portanto, conseguirá confiar e relacionar-se afetivamente com outras pessoas", completou.
O defensor também pontuou os danos patrimoniais, morais e estéticos sofridos por Ana em razão do ocorrido, consignando o dever de indenizar do agressor.
"O seu cotidiano desenvolve-se em função de cirurgias, tratamentos médico-hospitalares, atendimento psiquiátricos visando a reabilitação da saúde e, em função da busca de reparação e justiça por meio de longo processo legal. Portanto, é manifesto que a crueldade de Ricardo transformou integralmente o projeto de vida de Ana, roubando-lhe o destino e o sentimento 'do que poderia ter sido'", afirmou o defensor.
Decisão
Na decisão, a juíza que analisou o caso reconheceu o dever de indenização por danos materiais, morais, estéticos e existenciais.
Sobre o dano existencial ou dano ao projeto de vida, a juíza definiu como sendo "espécie de dano imaterial que atinge a qualidade de vida do indivíduo, causando dificuldades ou, ainda, impossibilitando que este desempenhe atividades cotidianas, considerados o âmbito social, pessoal e profissional".
Explicou, ainda, que não se confunde com dano moral: "enquanto este é configurado pela lesão a direitos que atingem a esfera da personalidade da pessoa humana (p. ex., intimidade, vida privada, honra e imagem), o dano existencial se consubstancia pela lesão a direitos que ferem a própria existência da pessoa, ou seja, a própria dignidade da pessoa humana, gerando assim o que se define como 'vazio existencial'".
No caso analisado, a juíza consignou que Ana foi submetida aos danos existenciais, "vez que não apenas perdeu a perspectiva de sua vida presente, pois as agressões foram bastantes a lhe fazer perder o sentido da própria vida, mas ainda lhe foi retirada qualquer perspectiva futura a curto e médio prazo, pois suas lesões cranianas lhe são impeditivos ao convívio social e interpessoal saudáveis".
Assim, julgou estarem comprovados os elementos que caracterizam o dever de indenização por danos materiais (no valor de R$ 5 mil), danos estéticos (no valor de R$ 25 mil), danos morais (no valor de R$ 25 mil) e danos existenciais (no valor de R$ 50 mil).