Nota Pública do Núcleo Especializado de Situação Carcerária sobre a crise no sistema prisional
“Esta atuação faz parte do compromisso da Defensoria Pública de São Paulo enquanto instituição autônoma e comprometida com os valores do acesso à Justiça e dos Direitos Humanos”
O Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de SP emite a seguinte nota pública a respeito da crise no sistema prisional:
A gênese do caos penitenciário, que a sociedade ora se depara com cenas de estarrecedora violência, apresenta uma indissociável relação com uma crise do constitucionalismo democrático.
A Constituição Federal, o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal são textos normativos concebidos para um modelo unitário de ordenamento jurídico. Este modelo conjugado se presta, primeiro, à manutenção da própria existência do Estado Democrático de Direito. A ele incumbe promover, coordenar, proporcionar e colaborar na construção legal da justiça social por expressa previsão da Carta Maior (artigos 1 º e 3º).
A unicidade do sistema, ademais, exige coerência entre suas regras: o cumprimento do catálogo de direitos fundamentais garante um processo de execução da pena instrumentalizado, ou seja, um instrumento público para a realização de justiça.
Há pelo menos 30 anos o sistema prisional nacional vive sob a égide de um Estado de Exceção.
É necessário superar uma cultura punitivista sistemática e histórica caracterizada pelo emergencialismo, funcionalização e deformalização do Direito Penal e Processual Penal. A emergência relaciona-se com a adoção de providências jurisdicionais - em grande parte, inconstitucionais - cunhadas pela improvisação, rigorismo, ausência de coordenação sistemática e pouca ou nenhuma técnica (utilização indistinta da prisão cautelar e não aplicação de substitutivos penais são exemplos). A funcionalização pertine à vinculação das ciências penais a uma política criminal que outorga à lei rígida a função de conter a criminalidade, como ocorre na obrigatoriedade de regime fechado para crimes considerados hediondos. A deformalização implica a supressão ou redução de barreiras processuais, de caráter inclusive constitucional, para tornar possível o uso de um instrumento repressivo com caráter político (abolição da presunção de inocência).
Ademais, permite-se há décadas que estabelecimentos prisionais se assemelhem a masmorras medievais do século XII: celas construídas para 12 presos comportam um contingente de quase 50 pessoas em cada uma. Não há equipe médica mínima. As estruturas das unidades prisionais não respeitam as normas de segurança de funcionamento e em quase nenhum estabelecimento prisional visitado pelo NESC há um Auto de Verificação do Corpo de Bombeiros. Não há iluminação, ventilação ou condições de higiene minimamente básicas. Os presos reclamam da qualidade e diminuição da alimentação e de maus tratos dos agentes penitenciários. Os fatos se subsumem aos tipos penais previstos para o crime de tortura (Lei nº 9.455/1997).
O modelo de atuação do poder do Estado no sistema penitenciário é o da suspensão de direitos como uma regra que consolida a estrutura jurídico-política da violência.
E esta normalidade da exceção jurídica instituída pelo próprio Estado permite que se empreste às vidas humanas a condição do descarte. O sacrifício dos presos que deveria indignar uma sociedade de conquistas civilizatórias, ao contrário, é esperada e, assim, constitutiva de política pública, como recentemente se decidiu pelo uso de Forças Armadas em ambiente prisional ou o desvio de finalidade em verbas do Fundo Penitenciário (Medida Provisória 755).
O domínio de uma única organização criminosa nos presídios de São Paulo, por outro lado, muito longe de nos trazer alguma certeza de tranquilidade, só reforça o argumento da inadmissibilidade de uma violência não regulada pela lei e permitida ou, muitas vezes, negociada pelo próprio Estado.
A mudança de mentalidade dos operadores do direito, a conscientização da necessidade de desencarceramento, a descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo, o fortalecimento dos conselhos de comunidade incrementando a democracia participativa na execução penal e a expansão e fortalecimento da Defensoria Pública em todo o Brasil são as verdadeiras medidas necessárias a serem adotadas para amenizar o estado de caos que caracteriza o sistema prisional atual e permitir que os princípios e regras constitucionais – hoje agonizantes – possam voltar a prevalecer, sob pena de restar condenada a democracia brasileira a um constitucionalismo meramente nominal e não efetivamente normativo.
É premente a restruturação da unicidade do sistema jurídico que compõe a Constituição Federal e os diplomas penais, exigindo-se para tanto um novo elemento ético para que o Estado-Juiz e o Estado Administração, ao contrário de um protagonismo que alimenta o ódio, o racismo e o encarceramento em massa, assuma o seu papel de garante da condição humana e sua dignidade.
Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de SP