Defensoria Entrevista

"70% a 80% das últimas decisões de relevo do STJ foram provocadas pela Defensoria Pública”, diz Reis

Ministro do STJ fala sobre a relevância da Defensoria Pública na atuação perante os Tribunais Superiores e analisa importantes decisões da Corte nos últimos anos

Publicado em 29 de Agosto de 2022 às 12:23 | Atualizado em 29 de Agosto de 2022 às 12:33

Na primeira edição do “Defensoria Entrevista”, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Reis fala sobre relevantes decisões da Corte proferidas recentemente, como a obrigação para que policiais registrem em vídeo e áudio a autorização de moradores quando for preciso ingressar em uma residência, a pena de multa a pessoas condenadas hipossuficientes e a concessão de regime aberto a pessoas condenadas por tráfico privilegiado. 

O ministro ainda analisou o papel do judiciário em casos que envolvem a aplicação do princípio da insignificância, apontou os problemas nos atuais métodos de reconhecimento adotados em inquéritos policiais e destacou a atuação da Defensoria Pública nos Tribunais Superiores.
 

Confira a entrevista:
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Qual é a relevância da Defensoria Pública em sua atuação perante os Tribunais Superiores?

A Defensoria Pública é uma presença fundamental. E eu sempre falo que uma das razões de ter melhorado e aumentado o acesso à justiça foi justamente a participação da Defensoria Pública. A Defensoria conseguiu trazer para os tribunais o dia a dia da vida daqueles menos favorecidos, das pessoas que não têm condições de contratar um advogado. Mais além, a Defensoria está fazendo isso de uma forma extremamente gabaritada,  ou seja, é uma boa atuação. Você vai ter a certeza de uma atuação técnica e com garra. 

E a Defensoria teve uma coisa muito positiva que foi essa reunião dela nos Tribunais Superiores, criando um grupo em Brasília de atuação conjunta, e isso é extremamente positivo porque otimiza o trabalho. Então, você consegue identificar aquelas questões de maior relevo, que são de maior importância e que tem um maior impacto e elas atuam de forma conjunta, apresentando apenas uma petição, um memorial. Isso é aproveitar, ou seja, fazer um esforço concentrado. 

Então, eu só dou parabéns e, até como cidadão, agradeço. Porque este tipo de atuação nos permite discutir temas que, às vezes, não seriam discutidos se não fosse esta provocação. Se a gente for ver as últimas decisões de relevo do STJ, boa parte delas, 70% a 80%, foram provocadas pela Defensoria Pública. Então, só isso já mostra a importância da atuação da Defensoria Pública nos tribunais superiores. 

 

Como o foco em precedentes qualificados pode ser efetivo para o cumprimento do decidido pelo STJ pelas instâncias inferiores?

A Justiça não comporta a quantidade de processos que tem no Brasil. A realidade é essa. Ela não consegue dar vazão, tanto que você vê inúmeros problemas. Um dos problemas, talvez de maior relevo, maior importância, seja a demora na prestação jurisdicional. E você tendo a possibilidade de otimizar o seu serviço, que vai ser através dos precedentes, isso facilita a vida, ou seja, se os tribunais já firmaram um entendimento, para quê que eu vou ficar rediscutindo isso, uma, duas, três, quatro, cinco seis vezes? 

Eu tenho até uma certa dificuldade de compreender isso: por que existe uma resistência tão grande à aplicação dos precedentes? A gente vê que nos países desenvolvidos isso não acontece. Se você vai nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu e acabou, não tem mais conversa. 

Devemos nos concentrar naquilo que não tem uma decisão ainda consolidada, um entendimento pacificado, ou seja, vamos valorizar o nosso trabalho. A nossa realidade não permite que a gente tenha o luxo de ficar decidindo a mesma tese diversas vezes.

 

A Defensoria Pública atua em casos que envolvem subtração de itens de baixíssimo valor, muitas vezes em furtos de alimentos, que se enquadram na incidência do "princípio da insignificância". Qual o papel do poder judiciário na análise desses casos?

O problema do princípio da insignificância é você não ter um parâmetro legal para definir o que é e o que não é insignificante. Isso está um pouco aberto. Foi uma criação adotada ao longo do tempo pela Justiça tendo em mente a questão da proporcionalidade. São situações em que, às vezes, você não tem um prejuízo palpável, ou se trata de uma ação, digamos assim, justificável, ou pelo menos perdoável, por parte do réu. E você prosseguir com isso implica em um custo maior. 

Agora, eu acho que quando você discute um caso isolado, de uma determinada pessoa e a respeito de uma coisa realmente insignificante, como o furto de uma coisa para comer, de uma fralda, você não vai ter muita dificuldade para analisar - em que pese a resistência de muitos juízes em aplicar o princípio da insignificância justamente por causa dessa falta do amparo legal. Mas eu acho que os tribunais já entenderam isso. 

Agora, você entra numa discussão maior no caso da reincidência ou reiteração. Há um argumento razoável do outro lado que diz que, de uma certa forma, quando a pessoa comete este tipo de delito uma, duas, três, quatro, cinco vezes, e tornar isso parte do seu dia a dia, se você abonar isso e entender que é irrelevante, corre-se o risco de estar incentivando que a pessoa repita aquela ação ou criando aquele sentimento de impotência à própria vítima. 

Inclusive, não faz muito tempo que o STJ decidiu sobre um caso desses, em que a pessoa tinha várias condenações por crimes semelhantes àquele que ela estava respondendo naquele momento. Na ocasião, eu acabei entendendo assim: “eu pessoalmente vejo que punir, ou seja, fazer a pessoa responder por uma ação penal por si só não tem se mostrado como uma solução para o que está acontecendo”. A gente sabe que a solução para isso é a garantia de saúde, educação e emprego para essas pessoas. Enquanto não se cuidar desse lado social, esse tipo de situação vai continuar acontecendo. 

Eu respeito quem, nesses casos de reincidência e reiteração entenda de uma forma diferente, mas eu procuro ser um pouco pragmático e tento avaliar se isso está resolvendo alguma coisa. Até porque a gente vai estar usando a estrutura do Judiciário, a estrutura da Defensoria Pública. E a gente vê casos como esses chegarem com frequência ao Superior Tribunal de Justiça, ao Supremo Tribunal Federal. Casos de furto de desodorante sendo decidido pelo Supremo. Quando é um primeiro caso, no qual você vai definir a tese e adotar um princípio a ser utilizado, tudo bem. Mas não é isso que está se discutindo, estão sendo discutidos casos concretos e não tem lógica levar até o Supremo Tribunal Federal uma discussão desse teor.

Eu acho que, de uma certa forma, quando este tipo de caso é levado ao campo penal, trata-se também de uma forma de tirar a responsabilidade do Estado. É a lógica da “pessoa presa, pronto, está resolvido”. E o Estado fica mais confortável e não enfrenta o problema como deve ser enfrentado.

 

Quais são os principais problemas com os métodos de reconhecimento utilizados no Brasil atualmente?

O problema quanto aos métodos de reconhecimento é algo que, inclusive, o próprio Superior Tribunal de Justiça tem responsabilidade sobre isso. Porque a lei prevê um procedimento a ser adotado, mas há anos que isso não vem sendo cumprido. Talvez por falta de estrutura do Judiciário, por falta de tempo, o fato é que o procedimento começou a ser feito de forma muito precária. Então, se começou a adotar fotografias que às vezes eram obtidas, e você não sabe como foram obtidas. Ou seja, a polícia tem um “álbum de suspeitos”. Mas como uma determinada pessoa teve a fotografia naquele álbum? É uma coisa que realmente não tem condição de funcionar certo. 

Houve, aliás, um caso recente que deu um pontapé na mudança de jurisprudência sobre isso no qual a vítima ao depor disse que o ladrão tinha, salvo engano, 1,60m e a pessoa que foi reconhecida por meio de uma fotografia 3x4 tinha 1,90m. Então, você observa nitidamente que o retrato não é suficiente para isso. 

Outro problema é a falta de memória da vítima, que é uma coisa natural. Na maioria dos casos você conta com depoimento da vítima ou dos policiais que fizeram a prisão, mas às vezes o fato ocorreu há um ano, um ano e meio. Será que ele vai se lembrar realmente do que viu? A própria vítima, às vezes, é atacada em um ambiente escuro, está assustada ou não consegue olhar direito para o criminoso, até porque as ações são muito rápidas. Então, há uma série de circunstâncias que afetam a credibilidade da memória. Não estou dizendo que haja má fé da vítima, nem nada disso, mas é que realmente são questões a serem consideradas. Tecnicamente, já se mostrou que a memória não é confiável.

 

Em 2021, o STJ decidiu que policiais que necessitem ingressar em uma residência para investigar uma ocorrência de tráfico de drogas sem mandado judicial, deve registrar a autorização do morador em vídeo e áudio e, sempre que possível, por escrito. Em que contexto se deu esta decisão e qual sua importância?

Bem, hoje você tem a regra que o policial só pode entrar na residência de alguém com ordem judicial. Porém, há situações em que há um crime ocorrendo e o policial não vai ter tempo de obter uma ordem judicial e fazer aquele processo todo. Então, havendo um crime em curso, o policial passou a ter autorização para entrar na casa. Agora, a discussão sempre foi muito grande no sentido de que como se vai ter garantia de que um crime está mesmo ocorrendo ou não. O que se via com muita frequência eram policiais entrando em casas após denúncias anônimas ou então alegando que a pessoa autorizou a entrada na casa, mas são coisas que a gente sabe que não ocorrem, ou às vezes ocorrem por uma eventual pressão. Imagina, você está na sua casa às duas horas da manhã e, então, chegam três, quatro policiais e você diz que eles não vão entrar? É uma coisa que assusta. A pessoa, na verdade, concorda, mas ela não tem noção de seus direitos, ela não sabe que ela pode dizer “não” . Ela não sabe as consequências. Então, a Justiça começou a avaliar esse contexto todo e começou a perceber que era praxe, e isso fez o STJ revisar o que estava decidindo nessas situações.

Com isso, o STJ decidiu o que eu acho que foi o melhor caminho: se há a autorização para o ingresso na casa, o policial precisa ter testemunhas desta autorização, um texto formal ou, o que eu acho que é mais prático de tudo, ter uma câmera registrando essa autorização. Acho que é uma proteção até para a própria polícia. Eu tenho dificuldade de compreender a resistência disso. Eu tive um caso em Brasília, ocorrido há uns dois ou três anos, no qual uma pessoa parada na blitz, que estava embriagada, e começou a bater boca com o policial e o policial se comportou tranquilamente. Mas a pessoa se afastou e começou a bater a cabeça numa grade e depois foi nas redes sociais dizer que tinha sido agredida pela polícia. A sorte do policial naquele momento foi que alguém tinha filmado aquilo e registrou que a própria pessoa havia se agredido para querer jogar a responsabilidade no policial. Então, uma ação filmada é uma proteção para a própria autoridade policial não ser acusada de abuso.

 

Em 2021, após pedido da Defensoria Pública de São Paulo, o STJ decidiu que o não pagamento da pena de multa não impede a extinção da punibilidade para a pessoa condenada que não puder pagá-la. Qual a  importância dessa decisão e o que ela significa na prática?

Bem, é uma realidade: a pessoa já cumpriu a pena e ela deixa de cumprir a pena de pagar a multa por impossibilidade e a gente sabe muito bem que quem sai do sistema prisional, muitas vezes, não tem emprego, não tem nada e vive de bicos ou às custas da família. Então, exigir o pagamento de uma multa para reconhecer a extinção da punibilidade, sendo que a parte mais pesada, que é restrição de liberdade, já ocorreu não tem lógica. Não faz sentido exigir o pagamento de uma pessoa que não tem condições financeiras. Mas, veja, não há uma anistia da multa, ou seja, apenas para efeito penal não se pode deixar de entender que a pena está cumprida. E, às vezes, são valores tão pequenos que o Estado nem vai executar porque não vale a pena. 

 

Em 2020, o STJ, por unanimidade, concedeu habeas corpus fixando regime aberto a todas as pessoas condenadas por tráfico privilegiado no estado de São Paulo. Qual foi a importância dessa decisão e o que ela representa na prática?

O tráfico privilegiado é a tentativa do legislador de separar o joio do trigo, de separar o traficante ocasional do traficante profissional. E evitar que o traficante ocasional entre no sistema penitenciário e aí se torne um profissional do crime. Com o tráfico privilegiado você pode reduzir a pena a até um ano e oito meses, implica em regime aberto e a pessoa não chega a entrar formalmente no sistema penitenciário. É uma tentativa de recuperação, de evitar que a pessoa reincida naquele erro e não retome a vida do crime.

Agora a grande dificuldade é a aplicação do dispositivo legal porque há uma resistência de uma parte considerável dos juízes. Apesar de não ser difícil para determinadas situações, há outras com peculiaridades. Às vezes a pessoa é presa, tem três, quatro tipos de droga consigo, tem outros equipamentos, uma balança, etc. Nestes casos, você vai tentar entender se ele é realmente um réu primário, se ele está começando, se ele já tem uma participação mais ativa no crime. 

Mas, de qualquer forma, hoje estamos em um momento em que o mundo todo questiona a própria criminalização do uso de drogas. Eu acho que a gente tem que realmente procurar separar o joio do trigo, separar o criminoso habitual do criminoso eventual. O Sistema de Justiça não pode penalizar uma pessoa de uma forma que a pena tenha um caráter perpétuo, que tenham uma dimensão tal na vida da pessoa que deixa uma marca que nunca vai poder ser superada. Talvez não deixar de punir, mas que seja uma punição que signifique mais como um alerta do que uma coisa que torne a vida futura da pessoa muito mais difícil do que já é. O juiz Luís Carlos Valois, de Manaus, costuma dizer que o uso da droga não é proibido, é criminalizado, porque quem quiser usar droga, usa. Qualquer um consegue acesso. Não tem como dizer que isso não existe. Não tem como dizer que a forma de combate que nós adotamos está dando resultado, não está dando resultado. 

 

Por favor, suas considerações finais.

Mais uma vez, gostaria de parabenizar a Defensoria Pública pelo trabalho que está fazendo, tanto em sua atuação local quanto nos tribunais. É uma instituição que cada vez mais está recebendo admiração e respeito de quem a acompanha.