Nota pública dos Núcleos Especializados de Cidadania e Direitos Humanos e de Situação Carcerária sobre caso do Massacre do Carandiru

“Esta atuação faz parte do compromisso da Defensoria Pública de São Paulo enquanto instituição autônoma e comprometida com os valores do acesso à Justiça e dos Direitos Humanos”

Publicado em 29 de Setembro de 2016 às 12:00 | Atualizado em 29 de Setembro de 2016 às 12:00

Os Núcleos Especializados de Situação Carcerária e de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo vêm manifestar sua consternação e preocupação pela anulação do julgamento que houvera condenado 74 policiais militares pela execução sumária de 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo (Massacre do Carandiru).
 
Causa assombro que se tenha aventado a tese de legítima defesa quando a volumosa prova pericial demonstrou que os presos foram fuzilados dentro de suas celas, em muitos casos com tiros na cabeça, nas costas ou em regiões vitais e por projéteis de armamentos diversos, o que torna descabida tal afirmação. Mesmo que objetos tenham sido arremessados contra os policiais, quando da malsinada invasão do Pavilhão 9, nada justificava que, uma vez controlada a situação, os presos fossem covardemente trucidados.
 
Colocar nos presos mortos a responsabilidade pelo seu destino fúnebre significa isentar “a priori” os agentes do Estado de qualquer responsabilidade pelos fatos, como se a ação policial pudesse violar as normas legais e quaisquer parâmetros de civilidade que se tente implementar em nosso país. Cada policial envolvido na ação tinha o dever moral de contrariar ordens manifestamente ilegais e, no mínimo, se retirar do local, quando não denunciar o que ocorria. Se não o fizeram, assentiram com o que ali se fazia e devem ser responsabilizados na forma da lei.
 
A decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo gera preocupante incentivo para que alguns policiais continuem a executar sumariamente pessoas rendidas, em geral jovens, pobres e afrodescendentes, caracterizados nos famigerados “autos de resistência”, em que o morto é transformado em autor da própria morte, sem que os verdadeiros assassinos sejam devidamente reconhecidos e punidos.
 
Assim como no Massacre do Carandiru, o Estado Brasileiro e seus governantes não reconhecem a existência e persistência de tal chaga social e racial. Antes e agora o Estado não assume publicamente sua responsabilidade pelas mortes em supostos confrontos, não demonstra com firmeza e clareza que tais atitudes são inadmissíveis, não formula políticas públicas eficazes para a apuração das responsabilidades e mudança de procedimentos, não presta apoio a familiares dos mortos e, como se acabou de ver, não pune os que se valem da condição de agentes da lei para cometer atos atrozes.
 
Nessas premissas de escolhas de modelo de atuação de poder pelo  Estado  Brasileiro, a  suspensão da ordem jurídica   passa a ser encarada com naturalidade  e, pior,  torna-se a regra.   A permissão deste quadro de suspensão de direitos - que admite uma violência não prevista em lei -   conduz  à instauração de um verdadeiro  Estado de Exceção que  se transforma, perigosamente,  em  estrutura jurídico-política consolidada.
 
É por esta razão que as prisões brasileiras continuam a ser masmorras pútridas, hiperlotadas e insalubres, em que os condenados sofrem muito mais do que a mera privação da liberdade, suportando um ambiente de horror que facilita o trabalho de quem os queira cooptar para continuar na delinquência.
 
A descartabilidade da vida humana, seja de  quem for, não serve como fundamento ético e jurídico para uma sociedade que se pretenda livre e democrática. Ao contrário, alimenta o ambiente de ódio e insegurança pública, aprofunda o abismo social e racial brasileiro, e cria ambientes segregados, em que autoridade é confundida com autoritarismo, que garante sua ancoragem na lei e na normalidade da exceção.
 
Quando se assente com essas práticas, banalizando o que deveria ser claramente repudiado, inocentando violadores da dignidade humana, perigosamente se abraça valores que, ao fim e ao cabo, nos leva a todos para a violência e a barbárie, das quais o Brasil tenta, a duras penas, se desvencilhar.