Defensoria Entrevista

Edson Fachin discute o futuro do STF e o papel das Defensorias na garantia de direitos fundamentais

Ao Defensoria Entrevista, o vice-presidente do Supremo Tribunal Federal ressalta a importância da descentralização da Justiça, do diálogo entre instituições e da defesa da democracia como pilares para o fortalecimento do Judiciário

Publicado em 18 de Outubro de 2024 às 14:15 | Atualizado em 18 de Outubro de 2024 às 14:24

Esta edição do Defensoria Entrevista apresenta uma conversa exclusiva e especial com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e vice-presidente da Corte, Dr. Edson Fachin, sobre temas centrais relacionados ao acesso à Justiça, o papel das Defensorias Públicas e sua visão de futuro para o Judiciário brasileiro.

O ministro destacou a importância das Defensorias na promoção da cidadania e no fortalecimento da democracia, enfatizando a necessidade de ampliação e capilarização dessas instituições em todo o país para assegurar que os direitos fundamentais sejam efetivados de forma ampla e inclusiva.

Fachin refletiu sobre os desafios enfrentados pelo STF em sua missão de garantir os direitos humanos e fundamentais. Segundo o ministro, o Judiciário está em um processo contínuo de evolução, com uma perspectiva de se tornar cada vez mais o “Supremo Tribunal Federal dos direitos humanos e fundamentais”, especialmente diante de questões como a proteção da população vulnerável, incluindo pessoas em situação de rua e encarceradas. Ressaltou que, no cenário pós-pandêmico, as instituições, inclusive as Defensorias Públicas, estão se reinventando para enfrentar novos desafios e promover a Justiça em um contexto cada vez mais complexo

Por fim, o ministro delineou sua visão para o futuro do STF, especialmente à frente dos desafios que se avizinham até final de 2025, quando, de acordo com a tradição do Tribunal, poderá assumir a presidência da Corte. Ele destacou três pilares fundamentais para a evolução do Judiciário: a descentralização das ações judiciais, a promoção de um diálogo interinstitucional e o fortalecimento dos laços com sistemas constitucionais de outros países, sobretudo da América Latina. 

Na entrevista que você lerá a seguir, Fachin reafirma o compromisso do STF com a defesa da democracia e da independência do Poder Judiciário e ressalta a importância do fortalecimento das Defensorias Públicas para garantir o pleno direito ao acesso à Justiça no Brasil. Confira.

 

Ministro, qual é a sua visão sobre o papel das Defensorias Públicas na promoção do acesso à Justiça no Brasil, especialmente para as pessoas em situação de vulnerabilidade?

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Fachin - É algo que, de fato, é essencial. Eu vejo a função da Defensoria como essencial para o acesso à Justiça. Quanto mais tivermos a atuação da Defensoria, certamente estaremos mais próximos da efetividade desse direito fundamental, que é, ao mesmo tempo, um dever do Estado: o de gerar condições aptas para que a instituição da Defensoria possa atender a esses reclamos. 

 

O senhor acredita que o fortalecimento das Defensorias Públicas pode reduzir as desigualdades no acesso ao sistema de Justiça? Quais seriam os passos necessários para isso?

 

Fachin - Não tenho nenhuma dúvida de que o fortalecimento da Defensoria pode, sim, contribuir. E fortalecimento aqui significa, ao mesmo tempo, que prover condições satisfatórias de funcionamento também representa a necessidade de uma ampliação das estruturas e do acervo necessário para que a Defensoria se capilarize, no caso das Defensorias estaduais, em todas as regiões e cidades do estado. Uma população com Defensoria é, certamente, uma população mais próxima daquilo que se designa como uma cidadania digna e própria de um verdadeiro Estado de Direito democrático. Um Estado com Justiça. Onde não há Defensoria, certamente, o índice e a densidade da Justiça são menores.  

 

A Defensoria Pública desempenha um papel fundamental na defesa dos direitos humanos. Como o STF pode atuar em conjunto com as Defensorias para garantir a proteção desses direitos? 

 

Fachin - A compreensão que eu tenho do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, é de um tribunal que, gradativamente, está marchando e dando passos importantes para se transformar substancialmente no Supremo Tribunal Federal dos direitos humanos e fundamentais. Este é um caminho imprescindível, mas que traz muitos desafios. Entre eles, está necessariamente a vigência e a efetividade plena dos tratados e convenções internacionais no Brasil que protegem os direitos humanos. Ao mesmo tempo, esse desafio também se projeta para questões muito concretas dentro do Brasil.  

Quando falamos da população em situação de rua, este é um dos desafios, mas podemos também falar da população carcerária. Existem inúmeros, tristes e trágicos exemplos de pessoas que perdem o mínimo de dignidade quando estão encarceradas. Isso, obviamente, é uma realidade desumana que afronta os direitos humanos fundamentais. Quem cometeu o delito não deixa de ser, e jamais deixará de ser, um ser humano, que deve ser tratado com a devida dignidade e respeito.  

É nesse sentido, de proteção e promoção dos direitos humanos, que o Tribunal enfrenta muitos desafios. Inclusive nesta seara que agora se abre também para direitos que são colocados em uma, digamos, visão superada do antropocentrismo, com o qual a modernidade e a contemporaneidade se construíram. O Tribunal vai, aos poucos, também abrindo as portas para os chamados direitos da natureza, especialmente diante da crise climática.  

O Brasil, no ano que vem, terá a COP 30, e será uma grande oportunidade para aprofundar esse debate e estabelecer esse tipo de horizonte. Por isso, o Supremo Tribunal Federal do futuro será, certamente, o Supremo Tribunal Federal dos direitos humanos e fundamentais. 

 

A pandemia de covid-19 evidenciou ainda mais as desigualdades no acesso à Justiça. Desde então, a Defensoria Pública de SP tem aprimorado suas formas de atendimento digital e a utilização de inteligência artificial. Como o senhor avalia a atuação das Defensorias Públicas nesse período e o que pode ser feito para aprimorar esse serviço? 

 

Fachin - Durante o tempo pandêmico, numerosas instituições foram chamadas a fazer prevalecer a racionalidade e os interesses da população contra compreensões absurdas de negacionismo e compreensões despidas de qualquer razão científica. Tivemos, portanto, uma situação de emergência. E, nessa situação de emergência, nesse tempo denominado 'tempo VICA' — Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo —, que corresponde ao tempo pandêmico, as Defensorias Públicas, em geral, e de um modo muito especial, as Defensorias estaduais, tiveram um papel relevante ao aportar ao sistema de Justiça reclamos relacionados, por exemplo, à vacinação. Houve uma atenção importante para a proteção tanto de crianças quanto de idosos, mas, de um modo geral, para a imunização contra a disseminação do vírus que assolou o país e provocou um luto nacional. Apenas aqueles que pertencem a uma outra esfera que não seja a esfera humana se mostraram indiferentes à dor e à tragédia que foi a pandemia no Brasil.  

Por isso, o papel das Defensorias foi e tem sido importante. Houve uma mudança paradigmática. Pode-se dizer que houve um tempo antes da pandemia e um tempo depois da pandemia. Essa mudança paradigmática se revela tanto do ponto de vista do conteúdo dos afazeres quanto do ponto de vista da metodologia desses afazeres. As instituições, de um modo geral, estão todas se reinventando nesse novo paradigma. Eu vejo com realismo, mas também com certo otimismo, a capacidade institucional que as instituições, de modo geral — portanto, o Poder Judiciário em sentido amplo, as funções essenciais da Justiça, e, dentre elas, necessariamente as Defensorias —, estão vivenciando nesse novo estado da arte, com novos desafios.  

O que foi feito nesse tempo de emergência, nessa espécie de grande sala global de emergência que vivemos, e o que foi feito aqui no Brasil, especialmente pelas Defensorias, foi exemplar. Feliz é o país que tem uma Defensoria atenta para defender os interesses da maioria da população. 

 

Por fim, sob o ponto de vista do acesso à Justiça, o senhor poderia falar sobre seu projeto como próximo presidente do STF?  

 

Fachin - Esse horizonte se coloca em duas dimensões, fundamentalmente. Nesse momento, minha tarefa principal é coadjuvar e contribuir para a gestão do ministro Luís Roberto Barroso, que tem feito uma gestão exemplar, aberta, vocacionada para um conjunto de temas sensíveis à população, com uma visão compromissória e emancipadora. Ele, como acadêmico, é o grande autor da Teoria da Efetividade da Constituição, e, como gestor, atualmente presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, tem levado a efeito muitas dessas diretrizes, colocando-as em prática.  

A segunda dimensão, evidentemente uma de médio prazo, é aquela que já conclama alguns desafios para uma gestão futura, que vai principiar no final de 2025, compreender o ano inteiro de 2026 e vai até meados de setembro de 2027. O país, certamente, já apresenta alguns desafios para o Supremo Tribunal Federal, e o país de amanhã, que já se avizinha, no meu modo de ver, aprofundará esses desafios. Os desafios são inúmeros, e as perspectivas também são diversas. Dentre essas perspectivas, eu apontaria três, fundamentalmente.  

A primeira delas é compreender que o Poder Judiciário não se resume às cortes superiores de Brasília. O Judiciário está presente em cada cidade, em cada comarca, onde houver uma institucionalidade presente — o juiz, o defensor público, o Ministério Público, a advocacia. O Judiciário precisa ser visto como um poder que atua em todo e qualquer lugar onde a cidadania reclame justiça. Portanto, enxergar essa dimensão descentralizada e capilarizada no país inteiro é uma das nossas primeiras diretrizes.  

A segunda diretriz é de natureza dialógica. Ninguém realiza justiça sozinho; o juiz não faz a realização da justiça sem o suporte das Defensorias, sem a presença do Ministério Público, sem a presença da advocacia, que é importante e fundamental também. Isso compreende, portanto, uma necessidade dialógica. O juiz não é apenas um despachante de papéis; ele deve ser um dialogante que escuta e coloca em diagnóstico as suas próprias razões diante dos fatos, amadurecendo sua convicção nesse procedimento dialógico e cooperativo. Assim, fomentar essa atuação dialógica e interinstitucional é uma segunda diretriz fundamental. Para isso, vamos percorrer o país levando essa mensagem.  

A terceira e última diretriz, que reputo extremamente importante, é olhar o Brasil em relação aos sistemas constitucionais dos países vizinhos, promovendo, portanto, um diálogo transnacional. Não apenas com os países que compõem o Mercosul e seus associados, mas precisamos compartilhar culturas, soluções de problemas, diálogos entre cortes. Por exemplo, diálogos entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Constitucional da Colômbia, a Corte Suprema da Argentina ou o Tribunal Constitucional do Chile, sem deixar de dar a devida relevância às experiências dos tribunais constitucionais da Europa continental e da América do Norte.   

Aqui, na nossa América Latina e, especificamente, na América do Sul, temos experiências a compartilhar. Temos problemas em comum e experiências que podemos trocar. Uma dessas questões que precisamos compartilhar e enfrentar, navegando nas águas turbulentas da contemporaneidade em comunhão, é a defesa da democracia e das instituições, bem como a defesa da independência e autonomia do Poder Judiciário. Estas são três, dentre várias ideias, que se colocam.